Em “L, o Musical”, Elisa Lucinda “educa, sem você sentir”
Uma história de amor que trata de temas tão cotidianos quanto postergados, como o corpo negro, a condição da mulher negra, homossexualidade, racismo, relações de poder, o poder da arte, as representações dos folhetins embala a chegada de Elisa Lucinda e Ellen Oléria aos palcos de São Paulo à frente de “L, o Musical”, no Centro Cultural Banco do Brasil a partir deste sábado, 6 de janeiro.
O espetáculo, que passou por Brasília e Rio de Janeiro, também é composto por uma seleção de 22 canções de artistas como Maria Bethânia, Adriana Calcanhotto, Cássia Eller, Simone, Márcia Castro, Mart’nália, Isabella Taviani, Maria Gadú, Leci Brandão, Sandra de Sá, Angela Ro Ro e Marina Lima, mulheres que se declararam publicamente lésbicas ou bissexuais, ou que têm uma identificação afetiva com esse público.
Na trama, Lucinda é uma prestigiada autora de novelas, Ester Rios, que relembra o grande amor da sua vida (Ellen Oléria) enquanto assiste ao sucesso da sua primeira trama, sobre um triângulo amoroso feminino.
Sobre o “musical-manifesto”, escrito e dirigido por Sérgio Maggio, e realizado pela Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada, Elisa Lucinda conversou com Preta, preto, pretinhos:
Preta, preto, pretinhos – Neste momento de crise de instituições no Brasil e crescimento de discursos de ódio e posições conservadoras, qual a importância de “L, o Musical”?
Elisa Lucinda – Eu trato assumidamente a arte como educação informal. Nesse sentido, acho que “L, o Musical” tem um papel muito importante na educação contemporânea, porque há ainda lesbofobia, homofobia, uma insistência em heteronormatizar o mundo, o que é uma loucura, porque qualquer comportamento que não seja hétero tratamos como minoria.
Se considerarmos a homossexualidade minoria, fica estranha essa nomenclatura, porque o mundo é cheio de gays e lésbicas, que insistimos em chamar de exceção. Acho que “L, o Musical” cumpre esse papel, tem linguagem contemporânea, é uma peça divertida, e não panfletária, e educa sem você sentir. Você diz: é uma história de amor que se parece com a minha, só que é uma história de uma mulher com outra mulher, de mulheres com outras mulheres. Para mim foi uma caixinha de surpresas, no sentido das coisas que eu descobri, mesmo sendo amiga de tantos gays e lésbicas. Viver uma faz você ter uma abordagem muito interessante. Eu aprendi muita coisa.
Eu acredito que essa peça ensine mais do que muitas palestras sobre o tema. E tem humor, né? Humor é muito poderoso, é uma inteligência agradável, que não nos humilha. Pode até nos levar ao ridículo, para que possamos rir de nós mesmos, mas ele conta com a nossa inteligência, o que nos faz aliados àquela crítica a nós mesmos, entende?
PPP – Um humor que humaniza, que mostra semelhanças, mais do que diferenças…
EL – Acho o humor muito inteligente nesse sentido. Parece que estamos rindo de outro que não somos nós, mas somos nós. E não dói tanto quanto quando o assunto é tratado com mais rigidez. Eu acho que “L, o Musical” é esse discurso que vai na contramão da intolerância, sem ser panfletário. Na verdade, é uma dramaturgia muito sofisticada do Sérgio Maggio, que vai descascando, como ele chama, uma dramaturgia em camadas, como uma cebola. É teatro de acontecimentos, de fatos em cena. Eu adoro a peça. Se eu fosse público, jamais adivinharia a próxima cena. Acho o roteiro um primor de imprevisibilidade. É uma peça romântica, delicada, acho que está chegando na melhor hora, na mais necessária hora.
PPP – O espetáculo concentra muitos temas para discussão e reflexão. Como você trabalhou essa proposta para fazer da protagonista, Ester Rios, o veículo de tantas mensagens ao mesmo tempo?
EL – Uma das coisas que me fascinaram no convite era o fato de eu viver uma “pretagonista”, com a Ellen Oléria. Nós inventamos essa palavra. Fizemos esse neologismo porque é raro uma mulher negra na trama principal, quem dirá duas. E foi curioso porque isso me atraiu. E, ao mesmo tempo, eu usei toda a discriminação, a humilhação, as experiências minhas na trajetória de existir como cidadã em uma sociedade de dominação branca, que exerce o racismo cruelmente a cada momento.
Esse assunto entra na vida de uma pessoa negra no país irremediavelmente. Não há como fugir ou não pensar nisso. Não existir racismo numa experiência negra no Brasil é muito difícil. Há casos, mas eles devem ser contatos nos dedos, porque a riqueza –digo isso para aqueles que insistem em dizer que o problema é só social- não protege, não exclui o negro rico de viver situações de racismo, pelo contrário. Até saberem quem ele é, ele vai ser o primeiro a ser parado em blitz. E vão achar que ele está roubando aquele carro.
PPP – Experiências pessoais que refletem uma realidade coletiva…
EL – Eu usei essa experiência de uma cidadã que sempre viu a discriminação acontecer na sua família, com seu pai. Eu sempre fui a única negra nas escolas em que estudei, por pertencer a uma classe média bacana, em boas condições de pagar uma boa escola. E isso me deu esse lugar de sempre me sentir assim nas situações de poder branco. Usei, então, essa experiência para emprestar à minha Ester tal carga, entende? Porque você vai endurecendo, porque o tempo inteiro te batem. A piada bate, a sociedade bate, o preconceito bate, o moralismo bate, tudo bate naquele mesmo lugar. Então, você vai criando uma crosta, né?
Eu acho que a Ester tem isso. Ela é altiva, foi muito pioneira, brigou muito como sapatão. Eu espero ser mais doce do que ela, mas eu emprestei esse lugar de combate numa circulação em que você é sempre visto como intruso, se você está em um lugar de poder. E ela é uma personagem poderosa, é uma dramaturga de sucesso, uma escritora de novelas.
L, o Musical
De 6 de janeiro a 26 de fevereiro
Centro Cultural Banco do Brasil São Paulo: r. Álvares Penteado, 112, Centro; sex., sáb. e seg., 20h; dom., 19h (acesso ao calçadão pelas estações Sé e São Bento do Metrô)
Classificação: 14 anos
Quanto: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia-entrada); venda pelo site Eventim.com.br
Mais informações: (11) 3113-3651 e 3113-3652 ou ccbbsp@bb.com.br