Consciência negra em “3%”, série da Netflix que estreia nesta sexta-feira

Logo no episódio de abertura de “3%”, a primeira série brasileira do serviço de séries e filmes Netflix, trama que estreia nesta sexta-feira (25), um dos personagens diz a um rapaz negro em cadeira de rodas: “Você sabe que aqui a gente não tem política de inclusão, né?”. E ele responde: “Eu sei, e assim mesmo acho que posso passar”.

Involuntariamente, essa cena reflete boa parte das discussões que a série já vem provocando.

Primeiro, à ficção: “passar” significa ser aprovado no duríssimo exame de admissão que é o centro de “3%”. Em um Brasil devastado pela miséria e pelo crime, a humanidade se divide em dois polos: os que, aos 20 anos, conseguem ascender ao “Mar Alto” –mundo teoricamente perfeito, de abundância, alta tecnologia, luxo e inteligência—e os que são eliminados na prova de seleção (chamada de “processo”) e passam a estar automaticamente condenados a sobreviver para sempre em meio aos 97% da população, relegada à própria (má) sorte, esfarrapados alvos ininterruptos de assassinatos e fome.

Vaneza Oliveira em "3%", primeira série brasileira da Netflix (Divulgação).
Vaneza Oliveira em “3%”, primeira série brasileira da Netflix (Divulgação).

“Dificuldade” de encontrar “negro bonito”

Agora, voltemos à realidade. Uma das características que logo chamam a atenção em “3%” é a seleção de atores excepcionalmente brasileira, em uma representação equilibrada da conformação étnica do país. Segundo conta ao blog César Charlone, diretor da produção e responsável por exigir atores negros em proporção coerente com a demografia nacional, no início seu pedido causou “estranheza” no interior da equipe.

Isso terminou ficando evidente demais, ao ser difundida nas redes sociais uma mensagem de um dos funcionários da agência de atores + Add Casting, que, ao pedir candidatos ao elenco, comentou da “dificuldade” de que fosse encontrado um “ator negro muito bonito” como queria a direção do projeto. A repercussão imediata, volumosa e negativa da mensagem fez com que a Netflix e a produtora da série, Boutique Filmes, viessem a público correndo para expressar rechaço às palavras do funcionário. A agência pediu desculpas.

Segundo pôde apurar o blog, alguns dos principais personagens negros da série –entre eles, os interpretados por Michel Gomes (o rapaz em cadeira de rodas), Viviane Porto e Vaneza Oliveira—ganharão ainda mais destaque na segunda temporada. Como havia previsto o ator na cena mencionada ao início deste blog: eles vão continuar a “passar”, apesar da peneira étnica do audiovisual brasileiro.

De forma acidental, um dos primeiros objetivos da série já foi cumprido: estimular discussões sobre como o Brasil se mostra na tela, um chacoalhão proposto pelo diretor uruguaio de filmes como “O Banheiro do Papa” e “Cidade de Deus” (onde Charlone assinou a direção de fotografia e conquistou uma indicação ao Oscar). Outro debate sugerido é o perigo da defesa da “meritocracia” –em “3%”, baseada em critérios pessoais disfarçados de objetividade. E, em última instância, a impossibilidade de alcançar o tão sonhado mundo perfeito.