Caetano Veloso: “O samba nos dá força e identidade”

Em meio à etapa sul-americana de “Caetano Apresenta Teresa” –show que acaba de sair do Uruguai rumo ao Chile, e em que o cantor e compositor baiano sobe ao palco ao lado de Teresa Cristina e Carlinhos Sete Cordas–, o artista conversou com Preta, Preto, Pretinhos sobre música, o “momento sombrio” do Brasil, Gilberto Gil e otimismo.

Caetano Veloso durante show agora em turnê pela América do Sul (Rafael Berezinski).

PPP – Aos cem anos de existência, quais as contribuições do samba para outros gêneros musicais e para a compreensão do brasileiro sobre sua história e cultura?
Caetano – O samba foi paulatinamente tomando o lugar de ritmo brasileiro por excelência e mesmo gênero que representa o Brasil. Isso teve a ver com os planos de Getúlio Vargas, o nosso ditador (depois presidente) populista. Mas os elementos estéticos e históricos do samba sustentam a ambição. O mito diz que ele nasceu na Bahia (como tudo no Brasil: os portugueses desembarcaram na Bahia, Salvador foi a primeira capital, lá se encontram as maiores relíquias arquitetônicas do período colonial e os mais importantes centros religiosos de origem africana). É fato que no Rio, que veio a ser capital do Império e da República, o samba teve desenvolvimentos que configuraram sua natureza hoje reconhecível. Tendo as mais potentes emissoras de rádio do país e as revistas de circulação nacional, o Rio divulgou intensamente sua cultura através das décadas. Há manifestações musicais nordestinas, nortistas, centro-ocidentais e sulistas de grande força. Mas o samba ganhou o lugar central. Ele nos dá força e identidade. Mitos são assim.

PPP – A turnê com Teresa Cristina começou no ano passado e, além do Brasil, já passou por EUA, Europa, Ásia, agora está na América do Sul. O repertório une Cartola e músicas suas que não cantava há algum tempo. Isso vai mudando ao longo das viagens?
Caetano – O repertório de Teresa não mudou. O meu, às vezes, muda um pouco: canto sozinho com meu violão e posso decidir um dia cantar algo que não vinha cantando antes. Mas a base geral permanece a mesma.

PPP – Quais são seus compositores e intérpretes de samba preferidos? Por quê?
Caetano – Wilson Baptista, Noel Rosa, Dorival Caymmi, Geraldo Pereira, Assis Valente, Tom Jobim, Carlos Lyra, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Jorge Ben, Gilberto Gil, Djavan, João Bosco & Aldir Blanc, Arlindo Cruz, Ary Barroso, Nelson Cavaquinho, Cartola, Ivone Lara, Bororó. Isso para só dizer os nomes de autores que me vieram primeiro à cabeça. O próprio número explica quão difícil seria tentar dizer por quê.
Quanto aos intérpretes: João Gilberto, Roberto Silva, Elza Soares, Ciro Monteiro, Aracy de Almeida, Carmen Miranda, Elis Regina, Ângela Maria, Zeca Pagodinho, Xande de Pilares, Teresa Cristina. E mais.

PPP – Qual a importância do samba, em particular, e da cultura brasileira, em geral, para a difusão de um Brasil que pode legar ao mundo não só corrupção e outras mazelas, mas também valores positivos?
Caetano – O Brasil se considerava um país triste. Quando eu era menino, era consenso que éramos um país triste. A ideia, lançada no belo e famoso livro de Paulo Prado (“Retrato do Brasil”), de que o país se formou de “três raças tristes”, era difundida e nunca contestada. As letras das canções eram quase invariavelmente sobre amores fracassados (nisso éramos iguais aos nossos vizinhos latino-americanos e diferíamos do povo dos Estados Unidos). Acho que as coisas começaram a mudar no período da bossa nova. Letras de Vinicius de Moraes e até de Dolores Duran apresentavam situações de amor vitorioso ou feliz. Os jornais de cinema passaram a botar samba na trilha sonora das reportagens sobre jogos de futebol (essa mistura de futebol e samba foi algo que, viso primeiro nos cinemas, me deu a impressão de que o Brasil seria capaz de crescer, enriquecer e brilhar).
Hoje vivemos, mais uma vez, a sensação de que nada de positivo somos capazes de produzir. Tenho uma reserva de otimismo maluco que me faz seguir vendo que, se chegamos a fazer coisas que críamos impossíveis para nós, perdemos o direito de dizer que certas coisas são impossíveis. Depois de descobrirmos que tudo é possível, não poderemos voltar atrás. Sei que estamos num momento em tudo é sombrio. Mas vejo Teresa sobre o palco, ouço o violão de Carlinhos Sete Cordas e retomo a esperança.

PPP – Você disse recentemente que, sem Gil, não estaria fazendo música. Sabemos da relação profunda entre os dois, da sua paixão por seu domínio do violão. Mas a sua permanência na música também está vinculada a Gil? Por quê?
Caetano – Vendo Gil tocar na TV baiana, me surpreendi com a possibilidade de que alguém tão próximo (Salvador era uma cidade pequena em 1963) pudesse tocar violão com tanta riqueza e inventividade. Quando o encontrei pessoalmente, ficamos logo amigos e eu aprendi tudo o que sei sobre acordes olhando as mãos de Gil sobre as cordas e os trastes. Depois, quando eu, sabendo que meu talento musical é limitado e muito inferior ao de colegas como ele, Milton, Djavan ou João Bosco, quis deixar de fazer música profissionalmente, Gil me disse que não, que, se eu deixasse, ele também deixaria. E ele era a música para mim.