‘Bertoleza’ relê ‘O Cortiço’ pela ótica da(s) mulher(es) negra(s)
Ela ajuda um ambicioso português, João Romão, a construir seu patrimônio, mas, ao tornar-se bem-sucedido, ele deseja outra acompanhante em sua nova vida. Essa é a história de “O Cortiço”, clássico naturalista de 1890, de Aluísio Azevedo, contado agora sob a ótica feminina, a da escrava que viabiliza a existência desse homem rico e poderoso, e que é protagonista de “Bertoleza”, musical em cartaz em São Paulo a partir desta sexta-feira (7).
O espetáculo, da Gargarejo Cia. Teatral, traz um elenco majoritariamente negro e leva aos palcos vivências cotidianas e personagens de referência da população afro-brasileira, ao traçar paralelos entre o que o autor maranhense retratou há 130 anos e a realidade de hoje.
A atriz Lu Campos interpreta Bertoleza, a escrava que, na leitura atual, incorpora ecos de mulheres negras brasileiras como a vereadora assassinada Marielle Franco, a escritora Carolina de Jesus ou a guerreira Dandara. E o dramaturgo Anderson Claudir adaptou a obra para os palcos e também dirige o espetáculo, além de haver composto suas canções. Os dois conversaram sobre a montagem – fruto de um trabalho de quatro anos – com Preta, Preto, Pretinhos:
Preta, Preto, Pretinhos – Como nasce esse projeto?
Anderson Claudir – Quando a Gargarejo surgiu, seu principal foco era adaptar obras literárias de leitura obrigatória para os principais vestibulares do país. A intenção era torná-las acessíveis para estudantes do ensino médio da rede pública. Em 2015, quando “O Cortiço” passou a elencar essas listas, o grupo se debruçou sobre a obra de Aluísio Azevedo para adaptá-la para os palcos. Por ser uma obra muito complexa e abranger diversos personagens, decidimos olhar para as mulheres da história. Surge então o projeto “O Cortiço por Elas”, com o objetivo de montar cinco peças protagonizadas por cinco personagens femininas do clássico.
A primeira mulher que ganhou vida e começou a cantar foi Bertoleza. Era como se todas as outras personagens estivessem por trás dessa figura. Antes, as mulheres do próprio livro e, por fim, as mulheres reais citadas na peça: Bertolezas de carne e osso. Marielles, Carolinas, Antonietas (a professora e jornalista Antonieta de Barros), Marias (a escritora Maria Firmina dos Reis) e Dandaras. Acredito que esse seja o grande ponto de evolução do projeto, enxergar em Bertoleza a possibilidade de dar voz a várias outras mulheres. Com isso, ressignificar o ato trágico que se dá com a personagem ao fim do livro. Bertoleza vem para mudar o imaginário. Para tomar posse de sua própria história.
PPP – A peça está composta por um elenco majoritariamente negro. Por quê?
AC – A Gargarejo sempre foi formada por um elenco diverso. Em 2019, a pesquisa sobre Bertoleza nos levou a mergulhar nas questões do feminismo negro. E um dos principais pontos levantados foi a representatividade e o lugar de fala. Bertoleza precisava de mulheres negras que falassem por ela e com ela. Como homem, ator, negro, sei como é difícil, principalmente no meio do teatro musical, que haja papéis voltados para os artistas negros. Acredito que criar um projeto como esse, em que temos dez atores negros em cena, é mais do que somente uma escolha estética, é recriar auto-imagem, criar possibilidades no imaginário e abrir caminhos para que muitos outros artistas negros venham a ocupar esses espaços.
PPP – A interpretação de Bertoleza foi amadurecida ao longo de quatro anos de trabalho com esse texto, como o personagem foi se transformando até se consolidar na versão que chega aos palcos?
Lu Campos – Participar de “Bertoleza” desde o nascimento do projeto tem contribuído para a minha expansão de consciência acerca da importância da minha negritude. Sobre o quão rica é a nossa matriz afro-brasileira e como o resgate ancestral que vivenciei tem papel fundamental para o resgate e para a estruturação da auto-estima das mulheres pretas do nosso país, na base da pirâmide social. Quando comecei esse processo, em 2015, me lembrei das minhas avós, ambas negras, em especial da minha avó materna, cujo corpo e jeito de falar me inspiraram para moldar a Bertoleza nesse primeiro momento – que era uma figura mais próxima das “Pretas velhas”, cujo linguajar era um misto de português com sotaques iorubás (acredito).
PPP – Qual o espaço e as oportunidades que as mulheres negras têm no teatro brasileiro hoje?
AC – Quando a gente fala da mulher negra no teatro, a gente tem que falar de Ruth de Souza – e de como ela fez um monte de coisas para quebrar a hegemonia branca no teatro. Ela foi a primeira mulher negra a pisar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, por exemplo.
E de como, desde lá, desde o Teatro Experimental do Negro, ainda tem sido difícil para as mulheres negras conquistarem um espaço dentro do meio teatral, principalmente em termos de papeis. Televisão e teatro sempre colocam ainda a mulher preta num lugar de subserviência. É até uma questão dramatúrgica, de como pensar essa figura da mulher negra no teatro. Nos últimos tempos, dentro do teatro paulistano, temos visto uma tentativa de mudar esses olhares, em grupos como Legítima Defesa, Coletivos Crespos e acho que, principalmente, As Clarianas.
Bertoleza
De 7 de fevereiro a 1º de março
Sesc Belenzinho (r. Padre Adelino, 1000, São Paulo, SP; tel. (11) 2076-9700)
Às 21h (sex. e sáb.) e 18h30 (dom. e no dia 22 de fevereiro)
De R$ 9 a R$ 30; mais informações em www.sescsp.org.br