‘O sistema de castas raciais da escravidão permanece vigente’, diz Nikole Hannah-Jones, do ‘New York Times’

A jornalista norte-americana Nikole Hannah-Jones, do “New York Times”, propõe um olhar singular sobre o legado da escravidão nos EUA: o de que, sem a luta permanente dos negros (primeiro pela liberdade e depois pelos mais elementares direitos civis), a democracia no seu país teria demorado muito mais (se é que aconteceria) e certamente seria menos robusta.

Em texto na edição 34 da “serrote” (revista de ensaios do Instituto Moreira Salles), lançada este mês, ela apresenta algumas das informações, investigações e reflexões reunidas junto a intelectuais negros no “Projeto 1619”, série especial publicada na “New York Times Magazine” – 1619 se refere ao ano em que chegaram os primeiros hombres e mulheres escravizados aos Estados Unidos.

Hannah-Jones visitou o Brasil para o Festival Serrote, realizado este mês, e, para contar sobre o seu ensaio, “As raízes negras da liberdade”, o trabalho nesse projeto e como vê os EUA de hoje, conversou com Preta, Preto, Pretinhos:

PPP – Qual foi a repercussão do seu “Projeto 1619”, ao discutir as bases da democracia americana e fundá-la sobre a luta dos negros por liberdade e direitos?

Nikole Hannah-Jones – Foi enorme. Tivemos muita leitura, eventos esgotados em todo o país e milhões de pessoas baixaram nosso podcast. Também houve detratores, que estão muito desconfortáveis com o modo como estabelecemos a escravidão, como algo fundacional para os Estados Unidos.

PPP – O Brasil tem uma longa, intensa e complexa história de escravidão. Você conhece o Brasil e essa história?

NHJ – Não sou uma especialista em Brasil, mas estudei o legado da escravidão e acho que a maior similitude entre nossas duas nações é o modo em que o sistema de castas raciais instalado durante a escravidão permanece vigente. As pessoas negras em ambas sociedades permanecem nos mais baixos patamares de qualquer indicador de bem-estar – pobreza, saúde, acesso à educação, encarceramento – e as pessoas brancas permanecem no topo.

“A eleição de Obama teve pouco impacto sobre o que é ser negro nos EUA.”

PPP – Como você vê as relações raciais nos EUA hoje em dia?

NHJ – Bastante precárias. Aproximadamente 90% dos negros norte-americanos consideram nosso presidente racista e que vivemos um momento difícil para ser negro nos EUA atualmente.

PPP – Aos 43 anos você já viu um homem negro ser presidente do seu país. Qual o legado de Obama para os negros nos EUA? Há um “antes e depois”?

NHJ – Não se pode exagerar o poder simbólico de uma nação construída sobre a escravidão ao eleger um homem negro à Presidência. Em termos tangíveis, a eleição de Obama teve pouco impacto sobre o que é ser negro nos EUA. Os negros ainda têm o dobro dos índices de desemprego dos norte-americanos brancos, mais baixa expectativa de vida, mais altas taxas de mortalidade infantil e materna, menores índices de pessoas com casa própria, menor riqueza. E, claro, o primeiro presidente negro foi sucedido por um presidente considerado um nacionalista branco por muita gente.

“Nos EUA, a luta de resistência negra abriu caminho para todas as outras lutas por direitos.”

PPP – Tenho uma amiga negra militante que sempre fala do perigo de instalar o que ela chama de os “Jogos Olímpicos da discriminação”, quando às vezes se entende que uma causa ou coletivo possui maior hierarquia do que outros. Quando você escreve que os movimentos negros pela liberdade abriram caminho para o feminismo ou para os movimentos LGBT, acha que os militantes desses movimentos entendem suas lutas dessa forma?

NHJ – Quando digo isso, não é que esteja participando dos “Jogos Olímpicos da discriminação”, simplesmente informo um fato histórico. Não posso falar por outros países, mas nos EUA a luta de resistência negra quase que literalmente abriu caminho para todas as outras lutas por direitos, introduziu o conceito de direitos civis e igualdade por lei, nos sistemas legais e políticos dos EUA, e levou à maior expansão de direitos na história norte-americana. Além do mais, a experiência daqueles cujos ancestrais viveram a escravidão racializada e o apartheid racial é única e de muitos modos não pode e não deve ser igualada com outros grupos que viveram a discriminação.

“Os haitianos não se chamam a si mesmos ‘afro-haitianos’.”

PPP – Seu texto recorda algo interessante, mas provocador: que os atuais negros dos EUA nunca estiveram na África. Reforça a reivindicação do início do seu ensaio sobre o fato de a população negra norte-americana pertencer “à bandeira dos EUA”.  A provocação reside no fato de que internacionalmente os coletivos negros adotam a África como uma fonte comum a partir da qual toda a diáspora se conecta, como território cultural e histórico. Ser norte-americanos antes de afro-americanos é uma forma de entender a luta contra o racismo como algo localmente universal, e não o contrário?

NHJ – Não discuto uma identidade singular nem digo que os negros não devem se pensar como parte de uma diáspora mais ampla. O que faço, ao contrário, é argumentar que é hora de deixar de permitir aos brancos norte-americanos e aos EUA como nação que nos façam sentir como se os negros não fôssemos totalmente norte-americanos. Como se não pudéssemos reivindicar a terra cuja riqueza e democracia foi construída por nossa gente de forma considerável. Podemos nos orgulhar da nossa ancestralidade africana, claro. Mas também deveríamos nos orgulhar de ser um grupo étnico único nascido dentro dos Estados Unidos. Essa é uma compreensão que os descendentes da escravidão em países majoritariamente negros, como Haiti, Jamaica e Trinidad, adotam automaticamente. Ninguém diz aos haitianos que não se chamem, orgulhosamente, de haitianos, porque seus ancestrais originalmente vieram da África. Os haitianos não se chamam a si mesmos “afro-haitianos”. Mas, devido ao fato de que os negros norte-americanos existem em um país de maioria branca, onde somos apenas 13% da população, nos fizeram acreditar que não podemos reivindicar nossa ancestralidade como norte-americana. O que rechaço é o que constitui uma negação da nossa linhagem e herança.