Nascido na pandemia, ‘sol e mensagem política’ inundam disco do BaianaSystem com Gil, conta Russo Passapusso

Reggaes, ijexás e recados que Gilberto Gil quis reforçar – com hits seus como “Pessoa Nefasta” – ganharam registro na versão carnavalescamente viva e vertiginosa do BaianaSystem. Em “Gil Baiana ao Vivo em Salvador”, a banda une clássicos do compositor soteropolitano (também estão no álbum “Nos Barracos da Cidade” e “Extra”, por exemplo) a canções próprias do grupo, como “Água” (de “O Futuro Não Demora”, vencedor do Grammy em 2019).

A “régua e o compasso” do autor de “Sarará Miolo” se misturam ao caldeirão eclético integrado por Russo Passapusso. O cantor e compositor de Feira de Santana conversou com Preta, Preto, Pretinhos sobre o resultado desse encontro, reproduzido no disco lançado recentemente e gravado no final do ano passado, na Bahia.

Preta, Preto, Pretinhos – Esse álbum nasce em meio à brusca mudança de rotina derivada do aparecimento do Covid-19 no Brasil…
Russo Passapusso – Esse disco não ia sair, era uma gravação que a gente fez, mas ia haver outros encontros, outros shows. Esse disco foi o primeiro encontro, o primeiro momento. Assim que entramos na situação de quarentena, resolvemos fazer um disco dub de “O Futuro Não Demora”, com essas imagens mais de estar dentro de casa, mais psicodélicas, de mantra. E o contraponto foi colocar esse disco cru, ao vivo, para as pessoas escutarem neste momento em que estamos em casa. De um show ensolarado, alto astral, mas também com uma mensagem política nisso. Foi dentro disso que Gil escolheu “Pessoa Nefasta”, “Sarará Miolo” e tudo o mais. E nós escolhemos as outras músicas pensando em ter reggaes e ijexás.

Capa de “Gil Baiana ao Vivo em Salvador” (Divulgação)

PPP – Como o trabalho de Gilberto Gil se encaixa no laboratório sonoro pilotado pelo BaianaSystem neste momento?
RP – É a história da “régua e compasso”, esse trecho de música que é tão simbólico e que significa tanto para nós. Queremos fazer o desenho da brasilidade, que não é só da música, do processo musical, mas de um entendimento melhor para a nossa diversidade. O que o Baiana faz é uma luta para continuar esses processos com essas ferramentas que o Gil já deu. Nesse álbum seguimos muito os processos que Gil já fez. Os ijexás ficaram muito populares com as músicas do Gil. Esse trabalho tem um efeito de continuidade no sentido atemporal, porque Gil é o que está em nós.
O nosso primeiro disco (“BaianaSystem”) foi minimalista e experimental. O segundo (“Duas Cidades”) teve um banho mais urbano, tem música eletrônica, rap, reggae, samba reggae. E então quisemos fazer uma obra, e o que faz uma obra é a relação com outras artes, com outras esferas, psicologia, filosofia, literatura… Quando afloram muitas vertentes dentro de uma música. “Água” (composta por Passapusso, Antonio Carlos, Jocafi, Ubiratan Marques e Roberto Barreto, do terceiro disco de carreira, “O Futuro Não Demora”, de 2019) é resultado de todos esses afluentes. O BaianaSystem colocava ritmos internacionais para poder mostrar ritmos locais. O reggae para mostrar o samba, o ragga para mostrar o repente… Em “O Futuro Não Demora” assumimos cargas mais fincadas na identidade brasileira e houve muita pesquisa. Antes de pegar na caneta, no violão, nos instrumentos, nos eletrônicos etc.

PPP – Qual foi o critério estabelecido para a escolha das canções de “Gil Baiana ao Vivo em Salvador”?
RP – O Baiana já queria fazer “Extra”, “Nos Barracos da Cidade”, que amávamos muito. O afoxé, o ijexá, a música ancestral é o que queríamos exaltar e tem relação com nosso processo. Escolhemos muito pelo ritmo, mas sabendo que com o Gil o ritmo não vem por acaso, vem carregado do sentido real do que propõe aquela escolha. Tem muito a ver com nosso momento político, com certeza. Também com a quarentena, o fato de poder teletransportar as pessoas um pouco para essa sensação de um show ensolarado, com 40 mil pessoas.

PPP – O BaianaSystem é crítico em relação ao atual Carnaval de Salvador. Qual a proposta do grupo para essa manifestação cultural da qual faz parte?
RP – O Carnaval é um grande laboratório social, e a gente o observa pensando nisso. As transformações são orgânicas. A indústria do axé cria esse ambiente (no Carnaval baiano) onde houve uma falência de formato… As cordas, o processso da polícia, a violência, o comportamento do folião, o machismo, o racismo, as agressões, o mercado informal, a venda para uma cervejaria, monopólio. Ele estava falindo por si só e tentando não se enterrar, tentando achar outros caminhos. A gente saiu de um lugar onde não havia mais lugar para nós. As pessoas que entendiam o BaianaSystem sabiam como era esse comportamento de conseguir brincar, dançar, falar, se comunicar. Além de (incluir) também as pessoas que moram nas ruas, e que não são obrigadas a compactuar com coisas que estavam acontecendo na frente delas. Pessoas que às vezes têm problemas psicológicos reais. É uma teia muito grande de relacionamentos. O BaianaSystem se vê como folião e, assim, consegue se comunicar melhor com o público. A gente como folião viu a estrutura do Carnaval de Salvador, que é diferente da do Rio e de São Paulo.
Não vejo que o Carnaval baiano esteja reagindo a esse processo, está tentando continuar dentro do mesmo modelo, seja de políticas públicas, seja de políticas pessoais, do folião. O BaianaSystem tenta trazer uma visão diferente, sem impor o que seria isso, mas que não seja pelo menos a visão do comodismo ou da repetição.