Inéditos de Luiz Gama saem à luz e ensinam ‘resistência’ na imprensa paulista e fluminense
“Se algum dia (…) os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei (…) faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta (…), e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei não a insurreição, que é um crime, mas a resistência, que é uma virtude cívica.”
Com essa epígrafe – trecho de texto publicado por Luiz Gama (1830-1882) em “O Correio Paulistano” em 10 de novembro de 1871 -, a professora doutora Ligia Fonseca Ferreira, especialista na obra do autor, dá início à coletânea de escritos inéditos do essencial pensador baiano, agora reunidos em “Lições de Resistência – Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro”, que está sendo lançado pela Edições Sesc.
Primeiro abolicionista negro do Brasil, advogado, republicano, escritor, Luiz Gonzaga Pinto da Gama é dono de uma biografia singular na história do país. Aos 10 anos foi vendido por seu pai branco como escravo, condição na qual viveu durante os oito anos seguintes. Autodidata que aprendeu a ler aos 17 anos, consegue provar que nasceu livre e, na condição de ex-escravizado, torna-se dos intelectuais mais influentes do seu tempo.
Mas, mais impressionante do que sua vida, são seus escritos, diz Ferreira a Preta, Preto, Pretinhos. “É verdade que Luiz Gama, o filho da africana livre Luiza Mahin, tem uma história digna de novela. Poderíamos passar 1001 noites contando e recontando-a, fazendo homenagens ou ainda erigir estátuas e monumentos que, no seu caso, teriam importante função. Mas Gama, que se enuncia como ‘negro’ no campo da palavra escrita – ou seja, na literatura, no jornalismo e no direito -, escolheu ser um ‘comunicador’ num momento em que negros ou escravizados não são ouvidos e muito menos lidos. Ao me lançar na pesquisa de doutorado, constatei que havia mais trabalhos sobre Gama do que obras de Luiz Gama disponíveis.”
Recuperar a voz do baiano em discurso direto passou a nortear, então, o trabalho de Ferreira, iniciado há mais de duas décadas. Professora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), ela é autora também de “Primeiras Trovas Burlescas & Outros Poemas de Luiz Gama” (Martins Fontes, 2000) e “Com a Palavra Luiz Gama. Poemas, Artigos, Cartas, Máximas” (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011).
“Só muito recentemente, Luiz Gama começa a encontrar um lugar na historiografia literária e das ideias jurídicas no Brasil. Agora parece-me fundamental dar visibilidade à sua atuação na imprensa, à qual se dedicou com ardor e paixão, e, assim, preencher uma lacuna na história da imprensa brasileira”, afirma a pesquisadora. “O conjunto de textos reflete as matrizes do pensamento e as ‘lições de resistência’, entendidas como dever de ‘virtude cívica’ por nosso primeiro abolicionista e republicano negro.”
“Vidas negras importam”, 150 anos atrás
Fruto de três anos de pesquisas em acervos físicos e digitais, incluindo coleções raras ou materiais em precárias condições de conservação, “Lições” reúne escritos, portanto, onde a faceta jornalística de Gama é a que emerge com mais força. Ali se refletem o rigor e a contundência de argumentos que pavimentariam a influência de sua pena sobre a opinião pública brasileira.
“É preciso lembrar que, no contexto em que viveu, um negro que pensa, escreve e através da escrita questiona e desafia o status quo escravista representa uma façanha histórica, um gesto político, uma mensagem para a posteridade, um exemplo que todos os brasileiros deveriam conhecer”, contextualiza a professora.
Nos textos, publicados em nove jornais paulistas e cariocas entre 1864 e 1882, o intelectual deixa transparecer não só suas mais profundas convicções mas também as transformações pelas quais o Brasil passava, carregadas de desafios sociais e políticos dos quais foi porta-voz.
“É preciso lembrar que, no contexto em que viveu, um negro que pensa, escreve e através da escrita questiona e desafia o status quo escravista representa uma façanha histórica” – Ligia Fonseca Ferreira
“Os leitores de hoje podem acompanhar a carreira de um jornalista negro, caso único de um ex-escravizado que rompeu barreiras, conquistou o saber e se tornou figura de destaque no meio letrado, em sua época, exclusivo de brancos. Luiz Gama encontra na imprensa, a grande mídia de seu tempo, o meio ideal de propagar suas ideias”, comenta Ferreira. “Os textos reunidos estampam seu ativismo pioneiro nas campanhas abolicionista e republicana, mais de 20 anos antes do fim da escravatura e da proclamação da República. Faz parte dos republicanos da primeira hora, é um dos mais velhos abolicionistas em geral, e, sobretudo, o mais velho dentre os abolicionistas negros, fato raramente apontado em manuais de história, inclusive nos mais recentes.”
Na coleção de escritos, que traz mais de 40 textos inéditos, além dos artigos de jornal – em que fica evidente a maestria com que Gama utilizava recursos jurídicos (aprendidos de forma autodidata) na defesa das liberdades civis e contra o arbítrio da escravidão -, se encontram também cartas do autor baiano, endereçadas a personalidades como Rui Barbosa e uma comovente missiva dirigida ao seu filho, Benedito Graco Pinto da Gama, então com 10 anos.
“Além da habilidade retórica e das agudas análises político-jurídicas, Luiz Gama revela-se um mestre da narrativa jornalística, quase sempre colocando-se em primeira pessoa, interpelando e provocando seus leitores, quando figura ele mesmo como personagem de alguma reportagem. No geral, faz o retrato implacável da escravidão que ele foi o único, dentre seus pares, a sofrer na pele. Deu visibilidade e nome tanto a pessoas escravizadas como aos seus impiedosos senhores. Não interessam somente os temas abordados por ele em seus artigos. Interessa não só ‘o quê’, mas ‘como’ escreve. Seu estilo é inconfundível”, descreve a especialista.
Quase dois séculos após seu nascimento, Gama – que poderia ser descrito como uma “celebridade” do seu tempo (epíteto, aliás, que rechaçava) – continua vigente e mostra-se pioneiro também na enunciação dos valores antirracistas que hoje mobilizam o mundo.
“A leitura de seus escritos é de surpreendente atualidade. Há mais de 150 anos, ele denunciou a corrupção sistêmica e a impunidade. Dissecou como funcionava a ‘justiça para negros’ e a ‘justiça para brancos’. Dedicou um cuidado especial ao trabalho e à honra das mulheres negras”, enumera Ferreira. “Acredito que, se estivesse vivo hoje, o jornalista e ativista Luiz Gama estaria na linha de frente de movimentos como ‘Vidas negras importam’, da defesa dos direitos humanos. Como filho de uma ‘estrangeira’ que foi deportada, sua atenção se voltaria igualmente para a situação de imigrantes e refugiados no Brasil.”
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Lições de Resistência – Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro
Organização, introdução e notas: Ligia Fonseca Ferreira
Editora: Sesc São Paulo
Preço: R$ 85 (392 págs.)