‘A luta ficou mais visível e complexa’, analisa José Adão de Oliveira, aos 40 anos do Movimento Negro Unificado

“Atingimos o objetivo de desnudar a mentira da democracia racial brasileira e criamos as condições para a participação social e a mudança da legislação desde a Constituição Federal de 1988.” Assim é como José Adão de Oliveira, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU) – nascido Movimento Unificado contra a Discriminação Racial -, resume, entre outras conquistas, o saldo de lutas da instituição que ajudou a colocar de pé há quatro décadas.

Essa trajetória é celebrada no livro “Movimento Negro Unificado: A Resistência nas Ruas”, organizado por ele, pelo jornalista e fotógrafo Ennio Brauns e pela pesquisadora Gevanilda Gomes dos Santos, historiadora e mestre em sociologia política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, além de integrante da diretoria da Soweto Organização Negra.

A partir do histórico 7 de julho de 1978 –quando mulheres e homens negros fizeram de palco as escadarias do Teatro Municipal de São Paulo para a sua primeira manifestação pública– e até os dias de hoje, o MNU trabalha para incidir nas políticas nacionais e acompanha a dinâmica social do país na articulação entre os ensinamentos do passado, o reconhecimento dos desafios do presente e a disposição para manter o otimismo (sem deixar de ser crítico, vigilante e propositivo) para o futuro.

Ou esse é o olhar de José Adão, que também, desde 2013 e em nome do MNU, integra o Fórum Municipal de Educação de São Paulo, do qual é cofundador. Ele conversou com Preta, Preto, Pretinhos sobre as memórias do movimento, agora compartilhadas em artigos, fotos e documentos, e o momento atual do debate racial no país.

PPP – O que mudou de 1978 para cá?
José Adão – A luta ficou mais visível e complexa. Quando a gente começou, a Lei de Segurança Nacional de 1971 proibia que se falasse de assuntos sobre negros e índios. Mas o ato foi público e saíram artigos na Folha e em outros jornais, inclusive internacionalmente. Colocamos faixas contra a violência policial, contra a discriminação racial, contra a tríplice exploração da mulher negra (gênero, raça e classe) e pela diversidade homossexual. Esses eram temas que não se abordavam naquele momento. Tivemos a ousadia de, perante o regime, colocar essas questões. E compareceram 2 mil pessoas ao ato.

PPP – Por que mais complexa?
JA – Porque, embora haja um apoio maior, há também um questionamento, uma certa afronta ou resistência de parte daqueles que estão, nos últimos dois, três anos, sendo estimulados a ser conservadores. Que defendem os valores da família tradicional, branca, patriarcal, a mando da propriedade privada, e que estão se colocando. Como a maioria da população é negra e não tem essas posses, ela é vista por essas pessoas como não pertencente ao usufruto dos bens. E a complexidade está em entender essa sociedade, isso traz dificuldades.

José Adão de Oliveira, um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (Foto: Fábio Magalhães)

PPP – E quais as grandes conquistas?
JA – Naquele período (anos 70) só 15% das pessoas se assumiam como negras ou pretas. A mulher de pele mais clara era chamada de mulata, e esse era um fator distinto. Hoje cerca de 56% da população se autodeclara negra (na soma de pretos e pardos). O termo mulato foi superado, e a autoidentificação reside no caráter positivo. As pessoas sentem orgulho de ser o que são – no passado não se queria assumir isso. O processo de luta fez com que houvesse políticas públicas nas quais o fator de pertencimento à raça negra traz oportunidades. Não há como negar que isso só foi conseguido pela luta do movimento negro e tendo o MNU como um dos grandes protagonistas desse processo.

PPP – Que reflexões, aprendizados e debates você vê após o assassinato de João Alberto Freitas nas dependências do Carrefour em Porto Alegre?
JA – Mostra o comportamento das forças de segurança patrimonial empregadas pelo Carrefour, casos que aconteceram repetidas vezes na rede, e também em outros supermercados, onde há o quartinho de segurança, para onde as pessoas são levadas para apanhar. No caso do Carrefour, aconteceu em um espaço externo, mas é uma prática interna.

É interessante que agora tenham criado um grupo de consultoria, mas se quisessem já podiam ter mudado isso há muito tempo. É necessário investir em educação pública de qualidade desde a base com a aplicação da Lei 10.639 em toda a rede de educação municipal, estadual e federal das universidades, para que os estudantes, quando forem para as forças de segurança, cheguem com formação humanista e abrangente, e não com uma formação racista. A ação do Carrefour agora é muito boa, mas um paliativo dentro do tal racismo estrutural, que começa na sala de aula. E nos quartéis, nos treinamentos, esse racismo é diariamente estimulado. No treinamento das tropas, nas amostras, naqueles colocados como suspeitos. É o cotidiano. Os policiais, além de seres assassinos, pelo que fizeram, também são vítimas do próprio sistema que os forma para isso.

Capa do jornal “Versus”, na edição de julho/agosto de 1978 (Reprodução/Acervo Soweto)

PPP – Você está na luta antirrascista há mais de 40 anos. Ela avança? Para onde?
JA – Eu vejo o futuro com muito otimismo e confiança. A vivência e as culturas negra e indígena, no sentido da ancestralidade e da integração com a natureza, vão vencer. Porque são culturas que partem da vida e da manutenção da vida, no sentido coletivo. O que acontece agora com as empresas é que elas veem em suas análises que a mentalidade média vai mudando. As pessoas não querem ser aquele policial assassinando a pessoa negra, na questão da identidade elas não querem ser isso. Então as empresas estão buscando essa nova “cultura antirracista”.

Mas para isso elas têm que trabalhar no concreto, exemplificar. O Carrefour está fazendo isso agora por pressão, mas outras já vêm atuando assim há algum tempo. E isso faz com que haja mais contratação de pessoas negras, que haja ascensão interna, para ocupação de cargos de direção e gestão. Quem vai ganhar com essa luta antirracista primeiro são as pessoas brancas, que vão reduzir seu grau de criminalidade contra os povos, porque isso é lesa-humanidade, lesa-divindade, lesa-natureza, lesa-um monte de coisas. Em seguida, as vítimas, nós, negros, teremos condições de estimular ainda mais nosso potencial e desenvolver nossa arte e cultura, habilidades, vocações, e seremos felizes de poder compartilhar isso com o coletivo.

E agora com as candidaturas negras nas Câmaras municipais, nas Assembleias Legislativas do país inteiro, em Brasília, na Câmara Federal e no Senado, a tendência é de grande melhoria. Estou muito otimista com o futuro e vislumbrando a juventude dando seus passos e direcionando este país para um bem-estar muito maior.

Movimento Negro Unificado: A Resistência nas Ruas
Organização: José Adão de Oliveira, Gevanilda Gomes dos Santos e Ennio Brauns
Editoras: Fundação Perseu Abramo e Edições Sesc
Preço: R$ 80 (216 págs.)