‘Bridgerton’ e ‘Lupin’ são descartáveis, mas absolutamente necessárias
Dois sucessos de audiência atuais na Netflix, as séries “Bridgerton” e “Lupin” não são comparáveis nem em trama, nem em orçamento, nem em geografia, mas apresentam vários elementos em comum: além de serem sensações na plataforma de streaming, propõem um debate racial ineludível.
O par romântico central de “Bridgerton” é uma donzela casadoira branca (Phoebe Dyvenor) e um misterioso “homem do mundo” negro (Regé-Jean Page) que chega de forma inadvertida aos salões reais de Londres, com seu título de duque e uma solteirice inabalável. Esses atributos ouriçam as ambições dos mais tradicionais clãs ingleses – qual de suas filhas conseguirá por fim conquistar o melhor partido do pedaço?
Onde já se viu filme de época ambientado na corte europeia em que um negro seja disputado como genro pelas mais nobres famílias? Pois é, na série produzida por Shonda Rhimes (de “Scandal”, onde um casal interracial integrado pelo presidente dos EUA também colocava Washington DC de cabelo em pé), esse é um dos eixos centrais. Além do fato de que a rainha da Inglaterra é – sim, isso mesmo – também negra.
Apesar de ser previsível e altamente água com açúcar, “Bridgerton” – baseada na série de livros de Julia Quinn, publicados a partir do ano 2000 – tem o enorme mérito (e não é o único, também oferece boas interpretações) de guiar o espectador por essa caracterização historicamente impossível e torná-la verossímil. Cria um novo imaginário e o normaliza.
Inferior em trama, requinte e atuações, “Lupin”, no entanto, também propõe um exercício semelhante: contar a história de Assane Diop (Omar Sy), um ladrão francês negro, filho de imigrantes africanos, que usa sua mente brilhante e seus notáveis dotes de ilusionismo não para acumular riquezas, senão para vingar uma injustiça familiar e, de quebra, desvelar um ataque terrorista que provocou a morte de vários franceses (mais não se pode contar, em defesa do bom combate ao spoiler).
Belo, ardiloso e cavalheiro, ele se inspira nos artifícios de Arsène Lupin (personagem de ficção criado por Maurice Leblanc em 1905). Apesar de fraco e cheio de erros, o roteiro convida à reflexão sobre temas importantes, como os estereótipos reservados aos negros e a invisilidade social que os acompanha (em vários momentos, Diop usa a seu favor a percepção de que “todos os negros são iguais”, por exemplo, ou que são naturalmente serviçais, à disposição para servir alegremente qualquer endinheirado que possa lhes oferecer estima ou uma gorda gorjeta).
A evidente preocupação com o debate antirracista é um trunfo, mas ao ser magnificado por vezes gera artificialismos e construções incômodas, pela superficialidade flagrante: todas as mulheres importantes na trajetória de Diop são loiras e mantêm com ele uma relação de devoção incondicional. Os investigadores em seu encalço são brancos incompetentes que sempre dão com os burros n’água, mas seu antagonista real – um policial que também é leitor ávido das aventuras de Lupin e por isso reconhece os padrões das atividades de Diop – é um francês de origem árabe.
Segundo informações da Netflix, “Bridgerton” alcançou o primeiro lugar de audiência, entre suas produções originais, em 76 países. De acordo com a revista “Variety”, a plataforma também projeta que “Lupin” deve ser vista por 70 milhões de assinantes neste seu primeiro mês de exibição – cifras que ultrapassam as projeções para “Bridgerton” (63 milhões de espectadores). A série francesa chegou ao número 1 da Netflix não só no Brasil, mas em países como Alemanha, Itália, Espanha, Argentina, Vietnã, Polônia, Holanda, Filipinas e Suécia.
Com esses números, fica cada vez mais difícil sustentar o preconceito de que “negro não vende”, ainda vigente não só no universo corporativo, mas também audiovisual. Viva “Bridgerton” e “Lupin”, e bem-vindas sejam mais histórias que coloquem em xeque a homogeneidade dos conteúdos de entretenimento massivo.