Capinan: ‘Medicaria o Brasil com um elixir de solidariedade’

Um dos idealizadores do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), integrante da Tropicália, médico, estudante de direito que deixou a universidade no fervor de 1964, o poeta e músico José Carlos Capinan fala das experiências e marcas da ditadura em “O Silêncio que Canta por Liberdade”, série prevista para estrear no segundo semestre e que retrata a censura dos anos de chumbo sobre a música nordestina. Os episódios, sob direção de Úrsula Corona, também trarão depoimentos de Gilberto Gil e Gal Costa.

Autor de poemas-letras que se tornaram joias da música brasileira, como “Ponteio”, “Soy Loco por Ti, América” ou “Clarice”, Capinan se dispõe a falar sobre seu passado, mas chega aos 80 anos com prioridades bem fincadas no presente: a missão de fazer o Muncab “resistir”, ao mesmo tempo em que luta por sua federalização – uma pendência que já dura duas décadas. Sobre seu trabalho na preservação da cultura e memória negra, a ditadura militar e o Brasil de hoje, Capinan deu a seguinte entrevista ao blog:

PPP – Você é parte da Tropicália. O Brasil de 2021 é propício para o nascimento de um movimento cultural que nos instigue a pensar o que somos de forma propositiva?
José Carlos Capinan – Situações como a nossa provocam crises do pensamento e no comportamento. A situação atual é uma dose interessante. Não é normal, porque se soma essa pandemia, e uma situação política sobre a qual está todo o mundo apreensivo e temeroso, sobre os destinos que o Brasil pode tomar com essa situação nebulosa. Os velhos militantes e pensadores, e os novos também, estão tendo grande dificuldade de dizer o que será amanhã e o que vai acontecer. Isso promove respostas do inconsciente coletivo e dos indivíduos. O que a gente precisa é criar formas de enfrentar. Isso é condição para que aconteça alguma coisa diferente, não sei o que é. Somos obrigados a pensar dentro de uma situação-limite e creio que vai haver respostas, sejam de pessoas, de grupos, de instituições. Mas haverá sim. Claro que vamos sair disso.

PPP – O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira, que idealizou, é um espaço ao qual você se dedica em tempo integral para que “resista”. Por que resistência?
Capinan – Eu não idealizei sozinho. Essa proposta nasceu no governo do Fernando Henrique Cardoso trazida pelo ministro da Cultura na época, Francisco Weffort. Acho que é resistência, também uma coisa criativa e que tem uma função didática para a sociedade e para nossa herança e memória. Didática por lembrar nossas origens, nossos ancestrais e nossas raízes. E aí, quando a gente come, faz música e pensa, certamente está usando informações e formas de origem do continente africano, que nos deixou um grande legado e que torna a civilização brasileira poderosa, rica e multicultural.

No Brasil, temos uma origem que até hoje nos cobra pedágio o tempo todo. Uma origem brutal, colonial e perversa. O tráfico de escravos deixou marcas de crueldade na civilização brasileira, e a gente na verdade consegue com muito esforço construir uma relação nova com o humano e com o homem. Essas marcas deixaram uma sequela que vai precisar de tempo, experiência e estudos profundos, no sentido de que conheçamos o que somos. A partir dessa origem, não como escravos, mas de saber a origem maravilhosa de nossos ancestrais, que nos dão força e esperança para conseguir construir outras coisas em cima desse cimento básico. O Brasil é um país fadado ao sucesso, apesar de não acreditarmos muito nisso. As tentativas de bloquear esse Brasil, inventor de si mesmo, nunca dão certo. A gente sempre acaba vencendo.

José Carlos Capinan, no Muncab (Foto: Vitor Carvalho)

PPP – Por que federalizar o museu?
Capinan – O Muncab nasceu no Ministério da Cultura, federalizar é a única forma de viabilidade que vai levar estrutura e sobrevivência ao espaço. Poderia ser estadual ou municipal, só não pode ser um projeto. O museu tem de estar ancorado em alguma instituição.
Quando fizemos o projeto, federalizar era uma das etapas. Não deveria demorar tanto, já estamos com 20 anos dessa proposição e nada aconteceu. Cumprimos todas as exigências, inclusive a compra de um acervo, que foi uma proposta de Emanuel Araújo e que hoje torna o museu interessante e que vamos tentar ampliar.

PPP – O debate antirracista avança no país? Como vê discussões que emergem a partir de programas como “Big Brother Brasil”, por exemplo?
Capinan – Avança. Eu vejo “BBB” como algo que até você pode entender como uma amostragem de um certo espaço da vida brasileira. É como se a gente fizesse um recorte da classe média, da elite e de seus padrões. Mas não é suficiente para explicar o que é o Brasil, não. É uma espuma, e não o mar, na verdade.
Fazer um projeto como um museu é apostar em coisas resistentes, mais futuras, não de consumo rápido.

PPP – Sua história no período da ditadura militar é um dos eixos da série “O Silêncio que Canta por Liberdade”. O que esses anos de chumbo te deixaram, em termos de autoconhecimento, mas também sobre a natureza humana e o Brasil?
Capinan – [Risos] Pergunta de vestibular. Difícil, hein? Todo o mundo aprendeu alguma coisa sobre o cinema, sobre o Brasil, sobre política, sobre situações-limite, e a ditadura foi uma situação-limite. Eu, por exemplo, nunca pensei em sair da Bahia da forma como foi em 1964, posso usar o verbo “fugindo”. Eu era muito jovem, tinha acabado de entrar na universidade de direito e foi aí que minha cabeça teve uma espécie de introdução à política, porque antes eu não tinha um grande conhecimento.

Quando entrei para a escola de direito, participei do CPC (Centro Popular de Cultura) e por conta disso fui indiciado num inquérito policial militar por ter escrito uma peça musical com Tom Zé, “Bumba Meu Boi”. Então minha vida de cidadão começou a existir de forma muito forte, saí de um Estado onde não tinha muita vivência política e fui jogado na fogueira de uma maneira muito rápida. Deixei a escola de direito e anos depois fiz vestibular para medicina e me formei médico. Foi aí nesse lance de sair da Bahia que eu realizei minha outra coisa que é meu trabalho na área de música.

Lancei um livro nos anos 60, o “Inquisitorial”, que teve uma vida clandestina muito interessante. Ele foi parar em Paris nas mãos do José Guilherme Merquior, que escreveu um ensaio sobre a obra. Quando estive em Angola, conheci o presidente da Assembleia Nacional. Ele disse que me conhecia, que tinha lido meu livro na prisão. Ele foi guerrilheiro de Agostinho Neto. Quer dizer, esse livro teve uma vida incrível. E aí por outro lado, nasceu esse sem-número de parceiros na área de música. Minha vida virou outra coisa, diferente do que estava aparentemente escrito nas estrelas.

Folha – Como médico, que diagnóstico faria do Brasil, e que remédio indicaria?
Capinan – O remédio que eu daria é um elixir de solidariedade. Medicina difícil essa, viu? Os médicos e trabalhadores da saúde são obrigados a trabalhar e se expor dessa forma. São grandes exemplos da solidariedade e do altruísmo que constroem uma cultura de fazer valer a vida. O Brasil já tem essa luta desde séculos passados. Já enfrentamos epidemias de febre amarela, gripes terríveis e outras formas de doenças. Temos exemplos incríveis de como a ciência enfrentou a ignorância, a barbárie e o medo com vitórias e demonstrações de que estavam certos aqueles que acreditaram na vacina. Isso resulta em conhecimento.

Vamos criando descobertas que permitem que o homem continue sua luta de aproximação e ação conjunta com a natureza, e não uma guerra para produzir riqueza e o que for. No candomblé, a gente aprende a lidar com a natureza e se beneficiar do que ela nos oferece. Sem folha, não tem vida. Precisamos entender que somos natureza, uma extensão da natureza, e não oposição. Somos extensão tão criativa como a natureza.