Mortalidade de pacientes pretos com demência aumentou 65% após eclosão da Covid-19 no Brasil, aponta estudo
A emergência sanitária provocada pela Covid-19 no Brasil, a partir do primeiro semestre de 2020, trouxe uma acentuada disparidade étnico-racial em hospitalizações e mortalidade entre pacientes com demência no país. Em comparação com o mesmo período de 2019, a taxa de mortalidade registrou uma diminuição de 9% entre pacientes brancos, mas um aumento de 65% e 43%, respectivamente, entre pretos e pardos.
Isso é o que aponta estudo realizado por pesquisadores das universidades federais de Pelotas (UFPel) e do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com a Universidade de Queensland, na Austrália.
A investigação, realizada por Natan Feter, Jayne Santos Leite, Ricardo Alt e Airton José Rombaldi, foi publicada hoje na revista “Cadernos de Saúde Pública” e examina o efeito da pandemia do novo coronavírus em hospitalizações devido a demência no Brasil, de acordo com dados extraídos do Sistema de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde (SUS). O estudo também se encontra disponível na Agência Bori.
“De forma inédita, mostramos um possível efeito indireto da pandemia de Covid-19. Já havia sido apontado em algumas pesquisas que pessoas negras apresentavam risco elevado para demência. No entanto, avançamos nesse conhecimento, mostrando como a pandemia influenciou negativamente nessa situação. A partir desses achados, é preciso uma reflexão do ponto de vista governamental de como reduzir tal disparidade observada”, diz Feter ao Preta, Preto, Pretinhos.
Foram analisados e comparados o número de admissões hospitalares por 100 mil habitantes, o valor médio reembolsado por internação e a taxa de mortalidade dos pacientes internados devido a demência durante os primeiros semestres de 2019 e 2020 – isto é, antes e durante a pandemia de Covid-19. Os dados foram estratificados por região geográfica e grupo étnico-racial – pretos, pardos e brancos.
Por “demência”, os investigadores consideraram todas as hospitalizações no SUS cujo diagnóstico principal foi definido como demência na Doença de Alzheimer, demência vascular, demência em outras doenças classificadas em outra parte e demência não especificada, de acordo com a Classificação Internacional de Doenças.
Segundo a Associação Brasileira de Alzheimer, há cerca de 1,2 milhão de casos no país, a maior parte deles ainda sem diagnóstico. Em todo o mundo calcula-se que existam 55 milhões de pessoas com a doença.
“O Brasil é o segundo país em prevalência ajustada de casos de demência, como a doença de Alzheimer, reflexo do pouco investimento em políticas de conscientização sobre a gravidade desses quadros”, pondera Feter, que também é coordenador do Grupo de Estudos em Neurociência e Atividade Física da UFPel.
Menos internações, mais mortalidade
Em 2020, as internações de pacientes com demência caíram 19,5%, e o gasto médio com hospitalizações diminuiu 43%. Em comparação com 2019, a diminuição de hospitalizações foi mais pronunciada entre pacientes pardos (-42%) e pretos (-39%). O gasto relacionado a essas internações foi 56% menor entre os pacientes pretos em 2020, comparado com o ano anterior.
Apesar de haver sido registrada uma redução geral nas taxas de hospitalização em todos os grupos estudados, a redução de hospitalização de pretos e pardos foi 105,3% e 121,1% maior do que a de pacientes brancos. A taxa de mortalidade nesse grupo diminuiu 9%, mas aumentou 65% e 43% entre pacientes pretos e pardos, respectivamente.
Ainda em 2020 pacientes pretos e pardos com demência tiveram chance de óbito 79% e 61% superior, respectivamente, à de pacientes brancos. Essa disparidade, observam os pesquisadores, não foi registrada no mesmo período de 2019. Entre as causas apontadas, estão “desigualdade no acesso aos serviços de saúde, crenças culturais sobre a demência como algo normal e que é parte do processo de envelhecimento, e falta de informação sobre fatores de risco e tratamento para a doença”, como registram no estudo, além de “maior prevalência de fatores de risco de doenças cardiovasculares entre essas populações”, afirma Feter.
Também a eclosão da pandemia de Covid-19, que “colapsou o já desigual acesso a assistência médica e tratamento, especialmente para populações vulneráveis”.
Raio-x e alerta
O estudo tem limitações ressaltadas pelos próprios pesquisadores. “A falta de dados sobre outras populações, como as indígenas, limita nossa capacidade de extrapolação dos dados para todos os grupos étnicos no Brasil. Por exemplo, nas hospitalizações de 2019, em 26,8% delas não havia dados sobre etnia dos pacientes”, detalha Feter. “Assim, o correto reporte dessas informações é indispensável para que futuras políticas públicas possam ser desenvolvidas de forma a contemplar todos os grupos étnicos no país”, diz.
“Segundo, o uso do DataSUS limita nossos achados para as hospitalizações dentro do serviço público. Visto que 3/4 da população utiliza esse serviço de saúde, essa limitação pode ter diminuído a ocorrência dos desfechos especialmente na população branca e em regiões mais desenvolvidas.”
Os autores ponderam também que “o súbito aumento de casos e mortes devido à pandemia pode explicar a diminuição da taxa de internações relacionadas a demência, já que a idade é um fator de risco tanto para a Covid-19 como para a demência”. Mas, escrevem, “é preciso destacar a notável diminuição das taxas de hospitalização entre pacientes pretos e pardos. O papel que a genética desempenha em diferenças específicas da raça, no que diz respeito à progressão da demência, parece ser superado por fatores sociais e culturais”.
Esses achados, observa Feter, devem ser entendidos como um primeiro raio-x da deterioração do atendimento de saúde entre pacientes pretos e pardos com demência, como um sinal de alerta que requer a realização de novos estudos e de políticas públicas, e como um disparador de uma discussão inadiável no Brasil.
“A expectativa é que os casos de demência no Brasil quadrupliquem nos próximos 30 anos. Sem estratégias eficazes e imediatas, um aumento nessa disparidade é provável. Precisamos trazer essa discussão para dentro do plano nacional de combate à demência”, afirma. “Uma ação coordenada de prevenção e conscientização é urgente. Caso contrário, o cenário que nos aguarda em 2050, quando o número de pessoas com demência atingir 4 milhões no Brasil, evidenciará uma disparidade maior do que a que está sendo alertada aqui.”
Erramos: o texto foi alterado
O texto grafava de forma errônea o termo "negros"; o correto é "pretos".