Estudo aponta como o racismo prejudica o desenvolvimento de crianças negras

Uma criança se esconde em um canto do pátio da escola durante o recreio para não ser alvo de “brincadeiras” dos coleguinhas, por conta da cor da sua pele. Outra chega chorando em casa porque uma amiguinha de jardim lhe perguntou “por que ela sempre está despenteada”. Uma terceira começa a dormir mal depois que seu cabelo, na creche, foi comparado “ao de uma bruxa”.

Um dos episódios aconteceu há pouco tempo; outro, há uma década; outro, ainda nos anos 80. Uma dessas meninas era eu; outra, minha filha; outra, a protagonista de uma das histórias elencadas no estudo “Racismo, educação infantil e desenvolvimento na primeira infância”, que acaba de ser publicado pelo Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância.

Em linguagem clara e com evidente fim didático, o material tem por objetivo indicar – a partir da análise de investigações qualitativas em saúde e educação produzidas no Brasil e nos Estados Unidos – como o racismo estrutural prejudica o desenvolvimento de crianças negras entre zero e seis anos, e que ações e políticas públicas devem ser tomadas para combater essa problemática.

“Um exemplo desse processo pode ser comprovado em uma pesquisa de mestrado que constata que uma instituição de educação infantil frequentada por 90% de crianças negras só tinha bonecas brancas à disposição delas e ninguém considerou esta uma incongruência na organização dos espaços de educação voltados para elas”, afirma ao Preta, Preto, Pretinhos a coordenadora do estudo, Lucimar Rosa Dias, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo e professora associada da Universidade Federal do Paraná.

“Há outros exemplos semelhantes ou de maior gravidade que esse, que colocam a criança negra na condição de invisível. Ou que lhes atribui um não-lugar, uma desvalorização de sua humanidade.”

Fragmento de “Racismo, educação infantil e desenvolvimento na primeira infância” (Reprodução)

De forma direta ou indireta, o racismo causa impactos negativos “em relação a oportunidades para adquirir habilidades e conhecimentos, autopercepção, autoconfiança, saúde física e mental, construção de identidade, relações parentais, socialização de saberes e acesso a direitos (condições de moradia, saneamento, alimentação, saúde etc.)”, descreve o estudo.

Alguns dos possíveis efeitos da desigualdade vivida pelas crianças já em seus primeiros anos de vida são, de acordo com o material, rejeição da própria imagem e impacto na autoestima, restrições para realizar sua capacidade intelectual, construção de uma identidade racial desvalorizada, problemas de socialização e inibição comportamental, propensão ao desenvolvimento de doenças crônicas na vida adulta, estresse tóxico, ansiedade, fobia, depressão, violência doméstica e dificuldade de confiar em si mesmas.

Ação individual e políticas públicas

A discriminação vivenciada durante a infância negra na escola – pelas interações com outras crianças e com profissionais – deve ser contemplada por políticas educacionais que não se eximam do recorte racial, indicam os investigadores. O material aponta também “negligência, desrespeito às normativas do Estado brasileiro, que prevê o direito ao pleno desenvolvimento de todas as crianças”, pondera Dias.

Ao mesmo tempo em que recordam a educação como “espaço de reprodução do racismo”, os pesquisadores também enfatizam esse como um lugar de mudança, já que em casa e na escola acontecem os primeiros “cursos de racismo”, como escrevem, em alusão às palavras do sociólogo David R. Williams, da Universidade de Harvard, autor de investigações sobre discriminação e saúde mental.

“As soluções passam por um compromisso ético de considerar a variável raça em qualquer política pública desenvolvida com foco na infância, seja ela relacionada à assistência, ao trabalho, à educação, ao lazer, dentre outras”, afirma Dias. “São fundamentais recursos financeiros que equipem as instituições com brinquedos, materiais pedagógicos e livros que possibilitem às professoras e professores desenvolver a educação para as relações étnico-raciais. Para que isso ocorra é imprescindível a formação inicial e continuada dos profissionais da educação.”